17 jun
2011

Desenho animado é coisa séria

Desenho animado é coisa séria: o imaginário infantil
e os conceitos espíritas

 

  1 – Uma guerra quase silenciosa

Interessante reportagem publicada em 29 de outubro de 2005 no caderno “Pensar” do jornal Correio Braziliense, do Distrito Federal, falando do lançamento do livro do biólogo Ernst Mayr, grande estudioso no século XX da obra de Charles Darwin, assevera em suas linhas que vivemos uma guerra silenciosa no mundo atual, onde o criacionismo e a teoria do “Design inteligente” se confrontam às ideias evolucionistas originadas de Darwin. Apesar desta questão ter figurado em artigos de outros jornais e até em programas televisivos, ela ainda figura com um certo caráter de absurdo, com um ar de comicidade em face da teoria evolucionista. Esse caráter tem-se apresentado de outras formas. O palco dessa luta é o livro, a sala de aula, a conversa entre os amigos durante o filme, e não está restrita apenas à nação estadunidense. Já sabemos de casos aqui no Brasil de alunos que se recusam a estudar e tiram zero nas questões sobre esse tema na disciplina de biologia, por contrariar a sua crença. São ideias “andando” por aí, contrapondo-se em provocações e debates acirrados, em tempos de exacerbado fundamentalismo. 

Essa guerra típica de séculos diferentes revela que as ideias estão imbricadas nas diversas expressões, de uma simples aula a uma música, e se espalham e se contrapõem em fóruns diversos. Outra “revolução” silenciosa dos conceitos teológicos transmitidos está ocorrendo, sem ter alcançado, entretanto, as páginas dos jornais, como a questão de o “homem ter vindo do macaco”. Imagino que isso ainda causa furor nos mais orgulhosos porque vai de encontro a conceitos estabelecidos por séculos pelas religiões dominantes no mundo ocidental.

O objetivo deste artigo é analisar ideias que estão sendo transmitidas para o público infantil nos programas destinados a esse público, mormente no tocante aos conceitos que se coadunam com as ideias espíritas, e mostrar como esse material pode ser utilizado pelo pai e evangelizador na formação conceitual das crianças.

2 – TV criança

Na época do lampião de querosene, a diversão da petizada era correr na rua, brincar de pião, de cabra-cega e uma série de jogos e cantigas, atividade que persiste até hoje em muitas regiões do país e por força de muitos educadores. Na década de 60, televisão era aquele artigo de luxo que apenas um menino de cada rua tinha e, por isso, reunia-se toda a rua para assistir aos programas na casa do menino. Era o início da TV, onde tudo era novidade e nesses quarenta e poucos anos muita coisa mudou. Falamos hoje da TV Digital, da interatividade. Fomos invadidos pela cor, pelos efeitos especiais e pelas várias opções de canais da TV por assinatura. No Brasil, cerca de 14% da população tem acesso a TV por assinatura e 90% tem acesso à TV aberta e estima-se que a criança brasileira passa em média três horas em frente à tela, a maior média do mundo, conforme atestou pesquisa da Universidade de Brasília divulgada na revista VEJA de 18/1/2006.

A TV transformou-se em ferramenta didática e entrou para a escola. Filmes, seriados, novelas e desenhos voltados para o público infantil e produzidos no mundo todo fazem da TV o substituto da babá contadora de histórias. Esses programas que invadem a nossa residência sem pedir licença trazem no seu simbolismo e no seu roteiro conceitos oriundos por vezes da cultura do país produtor ou, por vezes, um mero merchandising cultural de hábitos e valores, inseridos conscientemente para estimular de maneira subliminar o consumo de determinados produtos, a inclusão, o combate ao preconceito, o ódio a um inimigo do país e até valores de conduta.

3 – A influências das histórias e dos personagens

Contudo, como essas histórias e personagens podem traduzir para as crianças conceitos e visões de mundo que podem interferir nos seus próprios conceitos? Os desenhos infantis substituem os antigos contadores, os narradores de outras épocas, que narravam o cotidiano e o maravilhoso. A grande diferença é que a história hoje já vem com texto e imagem, já mastigada, com muita informação e pouco espaço para a interpretação e a imaginação, permitindo reduzido espaço para a discussão. Os contos de fadas apresentados nos desenhos modernos apresentam a raiz de ser um instrumento psicológico para a criança enfrentar um mundo cheio de dificuldades, buscando a identificação com heróis, tendo hoje como diferencial a inserção de relações complexas e longas entre os personagens, com raízes psicanalíticas, onde persiste a “moral da história”, geralmente associada ao pensamento chamado de “politicamente correto”.

Imagem - Internet - O Consoslador

Essas histórias então apresentam às nossas crianças soluções de como enfrentar o mundo, heróis, ídolos, fórmulas de conduta e verdades contextuais. Sim, cada desenho tem uma lógica, um conjunto de regras que funcionam como a “verdade” daquele desenho. Por exemplo, no “Tom & Jerry”, apesar de não falar verbalmente, os animais (gato e rato) pensam e se comunicam, o que difere da realidade, mas para aquele desenho é uma realidade contextual. A criança no seu mundo da imaginação importa aquelas verdades contextuais e volta ao nosso mundo, em suas viagens de revivência das histórias. 
Essas verdades contextuais influenciam a forma da criança ver o mundo, pois ela vive ali um mundo com novas regras. Ela não poderá voar como o “Peter Pan”, mas a verdade contextual de não querer crescer pode ser para ela uma verdade interior e exterior. A criança aos poucos vai descobrir que ela não pode disparar raios pelas mãos, mas aos poucos também descobre que, se não enfrentar o mundo, não conseguirá superar os obstáculos. Essas lógicas vão se confrontando e construindo as visões de mundo da criança, mediando o seu mundo de fantasia com o mundo real.

A questão é que essa lógica do mundo da fantasia sempre foi monopolizada. Por questões de ideologia dominante e de cultura do produtor, os desenhos mais antigos, como o citado “Tom & Jerry”, “Pica-Pau”, “Popeye, o marinheiro” ou “Mickey”, sempre trataram as questões teológicas mais cruciais, como Deus e a vida após a morte, de forma secular e clássica, representando sempre a oposição entre anjos e demônios, o céu de nuvens e o inferno flamejante, bem ao estilo medieval, com caldeirão e harpas. O contexto geopolítico também era outro… Desse modo, esses paradigmas eram reforçados e naturalizados nas crianças que assistiam àqueles desenhos.

4 – Os conceitos espíritas

Com a década de 80, com a queda do muro de Berlim, o início da globalização, o mundo começou a intercambiar mais as suas culturas. Com a ampliação das comunicações, com a internet e a TV por assinatura, com a entrada de desenhos de outros países, mormente os europeus e os japoneses, o eixo ideológico desses desenhos mudou. As culturas desses países vinham agora imbricadas nesses novos desenhos e a queda de modelos mais tradicionais, o avanço da corrida espacial e da astronomia, tudo isso fez com que as temáticas teológicas tivessem outra abordagem nas verdades contextuais dos desenhos animados. A imaginação necessária à competição precisa alçar voos e toda visão de mundo era importante para construir uma nova história. O público, mais crítico e esclarecido, tornava-se mais exigente e queria mais informações. 

Para ilustrar esse que é o ponto central deste artigo, vamos citar alguns desenhos voltados para o público infantil bem recentes, a maioria em exibição ainda, identificando neles conceitos similares aos conceitos espíritas, descritos na tabela a seguir:

Índice Conceito Espírita
A Evolução dos Espíritos
B Comunicabilidade dos Espíritos com os encarnados/Imortalidade da alma
C Pluralidade dos mundos habitados
D Pluralidade das existências (Reencarnação)

Na lista a seguir vão os desenhos e, caso o leitor tenha dificuldade de identificar ou saber mais sobre algum dos títulos, pode perguntar para o seu filho ou sobrinho, que ele certamente saberá. Certamente, a maioria desses desenhos tem uma carga grande de violência, em muitos casos explícita, mas não é nosso propósito avaliar o desenho em si e sim verificar a mudança de conceitos transmitidos. 

INU YASHA – Sucesso japonês, conta a história de uma menina que entra em um poço no fundo do seu quintal e lá retorna no tempo até o Japão feudal, onde vive situações relacionadas à sua encarnação nessa época, como uma sacerdotisa. Conceito: D.

AVATAR – Desenho recente da Nickelodeon, fala de um tempo na China onde as pessoas dominavam os elementos ar, água, terra e fogo e o Avatar que estabeleceria a ordem é aquele que já encarnou nas tribos dos quatro elementos. Conceito: D.

DRAGON BALL – Desenho japonês inspirado em uma lenda chinesa, conta a história de um menino com rabo de macaco e muito forte que na verdade veio de outro planeta e vive aventuras na Terra, em busca das esferas do dragão. Tem vários episódios ocorridos no “mundo espiritual”. Conceitos: B e C.

YU YU HAKUSHO – Desenho japonês onde Yusuke Urameshi é um jovem indisciplinado que perde a vida ao salvar uma criança de um atropelamento. Por recompensa, ele se torna um “detetive” do mundo espiritual, travando neste grandes batalhas. Conceito: B.

OS CAVALEIROS DO ZODÍACO – Outro grande sucesso nipônico, em que jovens de um orfanato são criados por um milionário que os treina para se tornarem cavaleiros com armaduras especiais para salvar a Terra de um perigo iminente e defender a jovem Saori, reencarnação da Deusa Athena. Conceito: D.

A MÚMIA – Desenho norte-americano inspirado na refilmagem de um clássico de 1932 trata de uma família de arqueologistas contra uma múmia que volta a viver. Baseado na mitologia egípcia, trata da reencarnação de personagens com grande naturalidade. Conceito: D.

SHAMAN KING – Desenho japonês que narra a aventura de jovens xamãs (médiuns) que, com a ajuda de Espíritos guerreiros do passado, travam batalhas “incorporados” entre si. Conceito: B.

DISNEY – O megaestúdio Disney tem produções com temáticas interessantes, como Irmão Urso e Mulan, que apresentam contatos ostensivos com entidades já desencarnadas e outros como Little e Stitch e o Galinho Chicken Little, que tratam naturalmente da vida em outros planetas. Conceito: B.

STAR WARS – A saga de seis filmes de George Lucas que resultou em diversos desenhos correlatos, além de considerar a vida em outros planetas, fala da “força”, um tipo de fluido que pode ser manipulado. Apresenta também personagens desencarnados que realizam aparições e se comunicam com os encarnados. Conceitos: B e C.

GHOSTBUSTERS – Desenho inspirado no filme de sucesso que teve na sua continuação a formação de um grupo que resolve montar uma empresa para caçar fantasmas. Conceito: B.

SCOOBY-DOO – O velho cão medroso e o seu amigo ainda fazem muito sucesso, em filme ou nos desenhos. A comunicação com os Espíritos é na maioria das vezes revelada como um embuste com fins comerciais. Entretanto, os episódios nunca negam a existência desses fenômenos. Conceito: B.

MARTIN MYSTERY – Um jovem estudante e a sua irmã acompanhados de um homem das cavernas são membros de uma agência que investiga eventos paranormais em vários planetas, aparecendo nos episódios toda sorte de fenômeno mediúnico. Conceitos: A, B e C.

A TURMA DA MÔNICA – Os nossos queridos personagens brasileiros esbanjam conceitos como o astronauta que visita outros planetas, o dinossauro Horácio e o Piteco na pré-história e a turma do Penadinho, que sempre traz aspectos da reencarnação e da mediunidade. Conceitos: A, B, C e D.

DINOSSAUROS – Diversos desenhos de várias nacionalidades têm como pano de fundo a questão dos dinossauros, caracterizando as ideias de evolução. Conceito: A.

DANNY PHANTOM – Desenho norte-americano que narra as aventuras de um menino filho de caçadores de fantasmas que por um acidente passa a poder se transformar em fantasma e combate os espectros do mal na busca de defender a sua cidade, com diversos fenômenos mediúnicos nos episódios, como incorporação. Conceito: B.

HARRY POTTER – O bruxinho mais famoso do planeta, ratificando sua origem inglesa, apresenta fantasmas do passado passeando pela escola e conversando com os alunos em todos os filmes. Conceito: B.

Como podemos verificar, a lista é extensa e com certeza incompleta. Pergunte a qualquer criança e com certeza ela já viu algum desses desenhos, pois são todos bem recentes. Além disso, a maioria tem a sua versão em livro ou em quadrinhos.
Obviamente, os conceitos apresentados nos desenhos apresentam várias distorções dos conceitos espíritas, mas isso não invalida que foi rompida a hegemonia do paradigma anterior de céu versus inferno. Como era de esperar, a predominância é nas questões da mediunidade e suas facetas e na vida em outros planetas, fruto dos avanços da astronomia e das descobertas da Transcomunicação Instrumental e estudos afins, sendo que os desenhos orientais apresentam mais a questão da reencarnação, que enriquece muito a trama. 

5 – Como potencializar isso?

Como dito, certamente os nossos alunos da evangelização ou filhos assistem ou já assistiram a pelo menos um desses desenhos. É inevitável, pois eles estão na escola, nos produtos licenciados e no jornaleiro. Essa relação que o nosso evangelizando/filho estabelece com um desses programas é uma oportunidade ímpar de explorar os conceitos espíritas e até morais ali contidos e criar uma discussão frutífera sobre o tema. 
Hoje a educação toda gira em torno de trabalhar a partir da realidade do aluno. Se nessa realidade já estamos encontrando conceitos que são afins com os nossos conceitos espíritas, nós temos que trazê-los para a análise crítica. Não nos cabe somente ver o mundo contido na doutrina espírita e sim identificar a doutrina espírita no mundo. Como o apelo e a influência desses desenhos sobre as crianças são enormes, o ponto de convergência deve servir de “fio da meada” para iniciar uma discussão de conteúdo. Se na sala de casa com os amigos, assistindo a um desses desenhos, o nosso evangelizando/filho explicar o que realmente aconteceu à luz da doutrina espírita, o conceito ali se consolidou.

6 – Conclusão

Às vezes tendemos a isolar ou ignorar o material divulgado pela TV por ferir a pureza doutrinária. O fato é que a revolução silenciosa dos conceitos teológicos está aí. Porém, raramente um desses desenhos será integralmente fiel aos conceitos doutrinários, até porque sua finalidade é outra. Certos mecanismos conceituais básicos podem ser ilustrados a partir destes elementos da realidade das crianças, permitindo a elas um melhor discernimento. Fugirmos disso é cairmos em uma redoma, bem próximo dos nossos amigos criacionistas.

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é pedagogo, evangelizador infantil e frequenta o Grêmio Espírita Atualpa em Brasília (DF), tendo editado em 2001 o livro “Alegria de servir” pela FEB.

Você leitor encontra este artigo também aqui > http://www.oconsolador.com.br/ano3/131/especial.html

5 Comentários

  • Estava assistindo, Yu Yu hakusho, e existem muitos mais caracteristicas espíritas no desenho do que as citadas ali :D, mas é claro que devem ser trabalhadas com muito cuidado, pois os desenhos trazem muitos aspectos negativos também…

  • Texto muito interessante…. não tinha noção!
    Parabéns!

  • Matéria legal, sou pedagoga e professora de física, sempre vetei muitos programas que incitam a violencia doméstica e social.
    Parabéns.

  • Vou utilizar este texto na reunião de pais do CELL.
    Abraços e agradecimentos mil.

  • Cida,
    nesse sentido veja também o texto em:
    https://bvc.cgu.gov.br/handle/123456789/3465
    Pode ser útil na sua reunião de pais!

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